segunda-feira, 31 de março de 2014

NEGÓCIO DE MENINO COM MENINA - Ivan Ângelo


O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina de uns nove anos ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:

- Olha que lindo! Compra pra mim?

O homem parou o carro e chamou:

- Ô menino.

O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da menina. O homem:

- Este passarinho é pra vender?

- Não senhor.

O pai olhou para a filha com uma cara de deixa pra lá.

A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse:

- Fala pra ele vender.

O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:

- Quanto você quer pelo passarinho?

- Não tou vendendo não senhor.

A menina ficou decepcionada e segredou:

- Ah, pai, compra.

Ela não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. No caso, faltava o vendedor. Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes:

- Dou dez mil.

- Não senhor.

- Vinte mil.

- Vendo não.

O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou três notas, irritado.

- Trinta mil.

- Não tou vendendo, não, senhor.

O homem resmungou “que menino chato” e falou pra filha:

- Ele não quer vender. Paciência.

A filha, baixinho, indiferente às impossibilidades da transação:

- Mas eu queria. Olha que bonitinho.

O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na manga o rosto vermelho de sol.

- Deixa comigo.

Levantou-se, deu meia volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas grestas da gaiola. O homem, maneiro, estudando o adversário:

- Qual é o nome deste passarinho?

- Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.

O homem, quase impaciente:

- Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sábia, é o quê?

- Aaaah. É bico-de-lacre.

A menina, pela primeira vez, falou com o menino:

- Ele vai crescer?

O menino parou os olhos pretos nos olhos azuis.

- Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho.

O homem:

- Canta?

- Canta nada. Só faz chiar assim.

- Passarinho besta, hein?

- É. Não presta pra nada. É só bonito.

- Você Pegou ele dentro da fazenda?

- É. Aí no mato.

- Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu.

O Menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão.

- Dou quarenta mil! Toma aqui.

- Não senhor, muito obrigado.

O Homem, meio mandão:

- Vende isso logo, menino. Não ta vendo que é pra menina?

- Não, não tou vendendo não.

- Cinquenta mil! Toma! _ e puxou a gaiola.

Com cinquenta mil se comprava um saco de feijão, ou dois pares de sapatos, ou uma bicicleta velha.
O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula.

- Quero não senhor. Tou vendendo não.

- Não vende por quê, hein? Por quê?

O menino acuado, tentado explicar:

- É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.

O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento.

- Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam'bora.

O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:

- Amanhã eu dou ele pra você. Ela sorriu e compreendeu.



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